Por Mauro Santayana, em seu blog:
Ao surpreender o mundo – menos alguns íntimos de sua fadiga – com a renúncia ao papado, Bento 16 revela a grande crise por que passa a Igreja Católica. Quando Gregório XII renunciou, em 1415, seu gesto unificou a instituição, então dividida sob três pontífices desde 1378. Ângelo Correr percebeu, com acuidade, que ele serviria melhor à sua própria posteridade ao servir à unidade da Igreja, e abandonar o trono papal.
Ao surpreender o mundo – menos alguns íntimos de sua fadiga – com a renúncia ao papado, Bento 16 revela a grande crise por que passa a Igreja Católica. Quando Gregório XII renunciou, em 1415, seu gesto unificou a instituição, então dividida sob três pontífices desde 1378. Ângelo Correr percebeu, com acuidade, que ele serviria melhor à sua própria posteridade ao servir à unidade da Igreja, e abandonar o trono papal.
Ele não era O Papa, mas a
terceira parte de um poder que, dividido, enfraquecia-se cada vez mais diante
do mundo e, o que é pior, diante da História. Os dois anos de vida que lhe
sobraram – morreu em 1417 - lhe devem ter assegurado esse consolo. Ele tinha 90
anos ao renunciar – uma idade difícil de atingir naquela véspera do
Renascimento – mas deu a seu gesto o claro caráter político, ao negociá-lo com
o adversário mais forte, e influir na escolha – unânime, do sucessor, Martinho
V – da poderosa família Colonna. Não alegou cansaço, mas, sim, responsabilidade
política.
Mais longa do que o Grande Cisma dos séculos 14 e 15, que durou quase 40 anos, é a já duradoura crise do Ocidente, de que a Igreja foi fiadora e principal organização política, desde Constantino e Ambrósio. Depois da morte de ambos, a Igreja se proclamou herdeira do Império Romano, com base em um documento apócrifo, a Constitutum Constantini, segundo o qual Constantino legava ao papa Silvestre I – e, assim, à Igreja – todo o poder político e todos os bens do Império. O documento, forjado no século 8, foi desmascarado por Lourenço Valla, no século 15.
Um dos mais destacados latinistas e gramáticos
da História, Valla provou que o latim usado para redigir o documento não
existia no século 4. A inteligência lógica de Ambrósio arquitetou a construção
política da Igreja, conduzida na sábia combinação entre a concentração da
autoridade espiritual no Vaticano, exercida mediante os bispos, e a
distribuição do poder temporal entre os reis e os senhores feudais, sem
esquecer o domínio direto sobre os estados pontifícios, que garantiam a
incolumidade dos papas.
Dessa forma foi possível, em esforço de
séculos, domar a anarquia, conter e assimilar os bárbaros e dar estrutura
política e social à Idade Média, com a consolidação da injustiça de sempre
contra os pobres e os pensadores que os defendiam, quase sempre levados às
inquisições e à fogueira, como ocorreu a Giordano Bruno, no auge do
Renascimento, em 1600.
Ambrósio, nobre burocrata do Império, que
pagão até ser eleito bispo de Milão, não agiu como teólogo, que não era, mas,
sim, como um dos mais hábeis estrategistas políticos da História. Coube-lhe
salvar os pontos basilares da idéia do Ocidente.
A Igreja sempre fez alianças com o poder
temporal, algumas piores do que as outras, a fim de evitar a prevalência do
verdadeiro Cristianismo sobre seus interesses políticos no mundo. É assim que o
Vaticano de nossos dias – depois de tolerância criminosa com Hitler, sob Pio
XII – mantém o acordo firmado entre Reagan e Wojtyla, há mais de trinta anos,
com o objetivo, atingido, de destruir a União Soviética e combater o
socialismo. É preciso lembrar que, para o êxito da conspiração, contribuíram o
traidor Gobartchev, hoje garoto propaganda dos artigos de luxo da Louis
Vuitton, e as operações do Banco Ambrosiano (valha a coincidência), para
financiar o Solidarinost, o sindicato de direita da Polônia, liderado por Lech
Walesa.
Mesmo que não a desejasse, Ratzinger seria
compelido à renúncia, pelos mais eminentes membros da Cúria Romana, que se
preocupam com a sanidade mental do Pontífice, cujo engajamento com os setores
mais conservadores da Igreja tem comprometido o seu arbítrio. Acrescente-se o
movimento, subterrâneo, mas vigoroso, da Igreja Latina – e mais perceptível no
episcopado italiano – de encerrar o período de papas menos universais e
empenhados em sua razão nacionalista, como o polonês e o alemão. Isso não
significa que o clero italiano recupere a Santa Sé, mas anuncia uma campanha
intensa durante o conclave em favor de um candidato com as chances de Ângelo
Scola, atual arcebispo de Milão, e advogado de diálogo franco e aberto com o
Islã.
Em seu pronunciamento de renúncia, o Papa
associou seu gesto à crise do pensamento ocidental, no tempo de alucinantes
mudanças:
“... no mundo de hoje,
sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a
vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é
necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos
últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a
minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado”.
Como anotou Gregório de Tours, no enigmático
século 6, o mundo de vez em quando envelhece, encasulado na dúvida, e reclama a
metamorfose. A Igreja Cristã (não só a Católica) e o Ocidente, xifópagos há 16
séculos, necessitam reinventar-se. Talvez a astúcia hoje dependa de pensadores
abertos, como o arcebispo de Milão, sucessor de Ambrósio no episcopado. Talvez
seja o tempo de se convocar não um Concílio da Igreja Católica, mas de
organizar-se Concílio Ecumênico Universal, para salvar a idéia de um Deus
comum, reunindo todas as crenças em nome da vida e da paz entre os homens de boa
vontade.
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